Por Ana Beatriz Souza, Ana Carolina Stopatto, Giulia Gollo, Isis Sá e Ricardo Soares

Após a cerimônia de apresentação de Tóquio à competição para se tornar a cidade-sede dos jogos Olímpicos de 2020, com o discurso da apresentadora franco-japonesa Christel Takigawa, o mundo passou a ouvir falar sobre e discutir o conceito do OMOTENASHI. Esta palavra, que foi a base da campanha japonesa em 2013, é comumente traduzida, de forma simplória, como “hospitalidade japonesa”. Porém, segundo Anna Shudo em seu blog, omotenashi não poderia ser traduzida somente por “fazer tudo o que é possível” ou hospitalidade.  A base filosófica prega receber o cliente ou visitante da melhor forma possível, sem segundas intenções, com o coração puro. Isso tanto para elementos que sejam visíveis (tenham forma) como para aquelas invisíveis (sentimentos). Omotenashi é muito mais do que isso. É um sentimento transformado em atitude, transmitido de forma sutil, delicada e, por vezes, silenciosa pelo povo japonês. Sem alarde, com muita discrição, mas com muito sentimento. Segundo Takahashi, em sua publicação na revista Hashitag:

A palavra omotenashi é explicada também como um gesto que não tem frente nem verso (omote, frente e nashi, sem). Ou seja, sem segundas intenções. Uma atitude de transparência, em que não se espera nada em troca. Apenas o prazer de bem servir, para que o consumidor do serviço atinja a plena satisfação. (TAKAHASHI, Revista Hashitag, nº 19, 2016, p. 37)

Ainda segundo o autor:

Para os japoneses, este gesto virou uma espécie de patrimônio imaterial, e zelar por ele tornou-se um ponto de honra. Muitos consideram o omotenashi como o elemento que serve de alicerce para os serviços de qualidade em atendimento que se observa nos aeroportos, no transporte público, nos serviços de uma forma geral e, claro, com mais ênfase na indústria da hospitalidade, como em hotéis. Na prática, o omotenashi é adotado inconscientemente em tudo que se exige comunicação pessoal. (TAKAHASHI, Revista Hashitag, nº 19, 2016, pp. 37,38)

A escolha deste tema se deu, pois, tratado por muitos como uma filosofia de vida, o omotenashi tornou-se além de tudo, um movimento mundial. Seu estudo é de suma importância para que a Gastronomia entenda seus princípios e absorva suas práticas, a fim de proporcionar ao comensal uma verdadeira experiência de tratamento com cuidado e carinho, que transcende a habitual hospitalidade. 

A origem do Omotenashi

Em geral, o omotenashi japonês tem sua origem associada à cerimônia do chá estabelecida por Sen-no-Rikyu no século XVI (AISHIMA, SATO, 2015).

A cerimônia do chá, do japonês chanoyu, é um ritual do Japão que consiste em servir e beber o chá verde, ou matcha. Do que se tem registro histórico, o chá foi introduzido no Japão aproximadamente no século VIII, porém, o matcha só se popularizou no final do século XIV. Os fundamentos do chanoyu somente foram concebidos a partir da utilização do chá na vida cotidiana dos “samurais”. Desde então, esses fundamentos desse ritual influenciam no modo de viver desenvolvido pelos japoneses. Segundo Powell e Cabello (2017):

De acordo com Isao Kumakura, professor emérito no instituto de pesquisa do Museu Nacional de Etnologia de Osaka, grande parte da etiqueta do Japão se originou nos rituais formais da cerimônia do chá e das artes marciais. Na verdade, a palavra omotenashi, literalmente “espírito de serviço”, vem da cerimônia do chá. O anfitrião da cerimônia do chá trabalha duro para preparar a atmosfera certa para entreter convidados, escolhendo tigelas, flores e decoração mais apropriadas sem esperar nada em troca. Os convidados, conscientes dos esforços do anfitrião, respondem mostrando uma gratidão quase reverencial. Ambas as partes criam assim um ambiente de harmonia e respeito, enraizado na crença de que o bem público vem antes da necessidade privada. (POWELL, CABELLO, 2017 – tradução dos autores)

A existência do provérbio “Ichigo ichie”, que significa “Um encontro que acontece uma só vez na vida” (KAWANAMI, 2016) corrobora com esta ideia. Além disto, os fundamentos do “código de ética do samurai”, ou bushido, pregam também a cortesia e a compaixão como seus valores fundamentais. Este código zela pela maneira correta de tratamento entre os japoneses, desde se curvar até mesmo o ato de servir chá. Seus preceitos baseados no Zen exigiam domínio das emoções, da serenidade interior e do respeito pelos outros, inclusive inimigos (POWELL, CABELLO, 2017 – tradução dos autores).

Porém Aishima e Sato (2015) criaram a hipótese de que o omotenashi japonês tem raízes no banquete, utage, descrito em Man-yo-shu, a mais antiga antologia de versos do Japão. Esta obra contém 4500 poemas no total, a maioria dos quais são formas fixas de poemas curtos como waka, feitos por uma variedade de pessoas, desde os imperadores até os comuns, das áreas orientais até a área de Kyushu. (AISHIMA, SATO, 2015).

A antologia tem três categorias principais: poemas gerais, poemas de amor e elegias. Os poemas gerais são aqueles feitos em ambientes públicos ou formais como banquetes e cerimônias. Normalmente, os poemas de Man-yo-shu estão divididos em quatro períodos. O primeiro período compreende os anos de 630 até 672, ou seja, muito anterior ao século XVI, quando se atribui o início do omotenashi. O número dos poemas de utage (banquete) assumidos, ou seja, aqueles que foram feitos no banquete ou para essa finalidade, equivale a 270. (AISHIMA, SATO, 2015). Os autores explicaram como eram rígidas as regras do banquete:

No banquete, bem como na cerimônia, o vestuário, o assento e a ordem de saudação eram estritamente determinados. Os poemas eram importantes como ferramentas para mostrar a hierarquia política. Os participantes eram obrigados a não expressar seus sentimentos pessoais em poemas (…), em outras palavras, eles deveriam fazer poemas mais apropriados ao humor do lugar, tratando do propósito do banquete e dos relacionamentos entre os membros (…), era crucial que os participantes conhecessem as regras implícitas, isto é, o padrão cultural que deveria ser compartilhado por cada membro. (AISHIMA, SATO, 2015 p.105 – tradução dos autores).

Os banquetes podem ser grosseiramente divididos em três tipos de acordo com o anfitrião e seus convidados: o imperador e os altos funcionários, os altos funcionários e seus seguidores e colegas e os governadores provinciais e gerentes locais. O principal objetivo do utage oferecido pelo imperador era fortalecer a confiança mútua. Os altos funcionários convidados deveriam escrever poemas para louvar o imperador.  Quando o alto funcionário fazia um utage como anfitrião o convidava seus seguidores e colegas, ele tinha outros propósitos, bem como para fortalecer a unidade do grupo. O anfitrião demonstrava seu poder através de alguns gostos e projetos trabalhados, enquanto os convidados deveriam mostrar sua inteligência. O governador provincial realizava banquetes como hospedeiro para entreter os gerentes locais da área, porque naquela época a renda do governador provincial dependia em grande parte da cooperação de gerentes locais. (AISHIMA, SAITO, 2015)

Diferenças entre hospitalidade e omotenashi

Para haver uma plena compreensão do significado de omotenashi, é necessário analisar o que se conhece hoje como hospitalidade ocidental. Segundo Lashley (2004), quando se iniciou os estudos sobre hospitalidade, este termo era utilizado para descrever o conjunto de atividades do setor de serviços associadas à oferta de alimentos, bebidas e acomodação. Esta terminologia, mesmo não sendo a mais adequada, abriu um novo campo de estudo, onde hotelaria e catering já não estavam mais dando conta da amplitude do assunto. Ainda segundo o autor, para haver um entendimento mais amplo a respeito da hospitalidade é necessário, em primeiro lugar, compreender que esta é, fundamentalmente, o relacionamento construído entre anfitrião e hóspede e é necessário realizar o estudo da hospitalidade através da análise da mesma em seus domínios: social, privado e comercial.

Como parte de seu estudo, Telfer (2004) busca entender se é possível um anfitrião comercial ser hospitaleiro, visto que, até então, entendia-se que o anfitrião comercial sempre possui um motivo oculto: o lucro. A autora conclui que:

Se um hospedeiro comercial atende bem aos seus hóspedes, com um interesse autêntico por sua felicidade, cobrando um preço razoável não extorsivo por aquilo que oferece, suas atividades poderão ser chamadas de hospitaleiras. Deve-se reconhecer que os hóspedes estão pagando por aquilo que obtêm, mas, se for lembrado que pode haver motivos recíprocos em relação à hospitalidade, este tipo de comportamento hospitaleiro poderá ser visto como uma extensão dessa ideia. (TELFER, 2004)

Hospitalidade e omotenashi diferem em seus conceitos fundamentais. A primeira baseia-se em procedimentos de conduta e tem uma conotação mais comportamental. São regras elementares para não provocar sensações desagradáveis ao usuário do serviço. Está intimamente ligada à “prestação de serviço”, e, como tal, há uma relação de subordinação entre o prestador de serviço e o cliente. Em sua origem, o termo “serviço” vem de “servitus”, ou escravidão. Nesta relação, o cliente é rei e o atendente é um serviçal. Com o estabelecimento de uma relação de dependência, surgiu a necessidade no mundo capitalista, de precificar o serviço. Daí, por exemplo, surgiu a taxa de serviço, os conhecidos 10% de gorjeta. (TAKAHASHI, 2016).

A grande diferença entre a hospitalidade ocidental e o omotenashi japonês está na postura do atendente e a sua expressão. Há um componente espiritual nessa atitude. No omotenashi, deverá haver uma atitude proativa de satisfazer totalmente as expectativas do usuário, tornando a prestação de serviço um ato de consideração extrema para com o consumidor; não se limitando a apenas criar experiências memoráveis para o consumidor. 

Omotenashi contemporâneo

Omotenashi é um estilo de vida no Japão. O Omotenashi aos olhos dos japoneses pode parecer óbvio, mas para o estrangeiro que visita o Japão pode ser admirável (AMIKURA; VILKAS; WADA, 2016). Suas atitudes podem ser notadas no cotidiano dos japoneses, desde ao utilizarem máscaras para evitar infectar outras pessoas com seu resfriado até a entrega de caixas de sabão em pó como presente antes de alguma reforma ou construção, para limparem suas roupas. Funcionários em lojas e restaurantes cumprimentam os clientes curvando-se em reverência e com um caloroso irassaimase (bem-vindo). Eles colocam uma mão sob a do cliente quando dão o troco, para evitar a queda de quaisquer moedas. Quando o cliente sai da loja, não é incomum que eles parem na entrada se curvando até que o consumidor esteja fora da vista.

As máquinas também praticam omotenashi. As portas de táxi abrem automaticamente e o motorista de luva branca uniformizado não espera uma gorjeta; elevadores pedem desculpas pela espera. Na cultura japonesa, quanto mais longe do grupo alguém é, maior é a cortesia mostrada a essa pessoa – e é por isso que os estrangeiros (gaijin – literalmente, “pessoas externas”) são invariavelmente surpreendidos ao se deparar com tais cortesias.

Para os Jogos Olímpicos de 2020, o governo japonês aposta na instalação de sistemas operacionais baseados no omotenashi para controlar robôs que interagirão com o público. Com a previsão de conclusão para 2019, o programa vai permitir que estrangeiros postem informações em aplicativos, que então compartilharão esses dados com hotéis, restaurantes e outras instituições autorizadas (HAY, 2017). Robôs omotenashi ouvem os pedidos dos turistas ao serem abraçados e devolvem informações vindas de uma base de dados da nuvem. Apesar da comunidade internacional se mostrar cética, não seria surpreendente se um robô fizer seu drink preferido exatamente da forma como se gosta. 

O omotenashi já está também na palma de nossas mãos. Como sequência para os estudos de Wada (2015), Amikura, Vilkas e Wada (2016) buscaram entender como o omotenashi está sendo utilizado em aplicativos disponíveis nas lojas do iOS. Esta pesquisa baseou-se em três etapas: pré-análise, exploração de material e tratamento dos resultados. Os aplicativos explorados, além de apresentar o conceito de omotenashi em sua descrição, apresentavam inclusive a palavra em seu ícone. Percebeu-se a preocupação das empresas desenvolvedoras para que o usuário tenha todas as informações disponíveis e em proporcionar o bem-estar e o correto aconselhamento. Segundo os autores:

Nos quatro aplicativos observa-se que existe a preocupação de acolher bem o estrangeiro, o visitante que pouco sabe sobre o local onde se encontra, por meio da prestação de seus serviços com informações e direcionamentos relevantes. As organizações que prestam serviços de hospitalidade precisam rever constantemente as expectativas do cliente e ajustar-se a elas. (AMIKURA; VILKAS; WADA, 2016)

Considerações finais

Através do presente trabalho é notável a importância do omotenashi para a sociedade japonesa. Trata-se de um sentimento enraizado em cada cidadão, onde cada um deve se preocupar com o outro, desde como o outro se sente em relação a algo, indo até mesmo aos questionamentos: o que eu posso causar nessa pessoa? Qual a minha influência? Omotenashi transpassa um estilo de vida, transpassa inclusive os conceitos que se tem da hospitalidade ocidental. 

O omotenashi é um exemplo a ser seguido por qualquer outra população do mundo. É preocupar-se com o outro sem obrigações, por querer ajudar, é intrínseco e altruísta. Além das máquinas, espera-se que, com a finalização dos Jogos Olímpicos, depois de 2020, este seja o grande legado do Japão para todo o planeta, já que este foi o grande pilar que sustentou sua campanha durante 2013.

Cabe uma reflexão em relação ao uso da tecnologia em hospitalidade. Até que ponto o uso de máquinas é realmente omotenhashi e não uma mera estratégia comercial? Hospitalidade, em essência, pressupõe a interação entre pessoas. Ao transferir para máquinas a tarefa de se relacionar com humanos, o conceito não se perderia? São questões que possivelmente serão respondidas apenas no futuro, uma vez que trata-se de questão muito recente e ainda em desenvolvimento.

É fundamental que mais estudos sejam realizados sobre este tema para que se torne algo alcançável e conhecido pelo resto do mundo. No Brasil, a maioria dos trabalhos na área de hospitalidade tem como referencial autores europeus ou americanos. Por tratar-se de um estilo de vida, há muito campo a ser explorado, desde o atendimento em si até mesmo as formas de apresentação de pratos e ambiências em espaços, para que se ofereça a melhor experiência possível aos hóspedes e também ao comensal.

Referências Bibliográficas

AISHIMA, Toshimi; SATO, Yoshinobu. The Origin of Japanese Omotenashi in Man-yo-shu. ビジネス&アカウンティングレビュー, Tokyo, n. 16, p. 103-122, dez. 2015. Disponível em: <http://jairo.nii.ac.jp/0029/00011027/en>. Acesso em: 15 nov. 2017.

SHUDO, Anna. O significado da palavra OMOTENASHI. Disponível em: <http://annashudo.weebly.com/artigos/o-significado-da-palavra-omotenashi>. Acesso em: 17 nov. 2017.

AMIKURA, Liliane; VILKAS, Ádiler Caroline; WADA, Elizabeth Kyoko. Omotenashi: Hospitalidade como fator relevante na prestação de serviços. In: SEMINÁRIO DA ANPTUR, 2016, São Paulo. Anais do Seminário da ANPTUR… São Paulo: [s.n.], 2016. p. 01-11. Disponível em: <https://www.anptur.org.br/anais/anais/v.12/DHT1/494.pdf>. Acesso em: 15 nov. 2017.

TAKAHASHI, Jo. Omotenashi: A arte japonesa da hospitalidade. Hashitag, São Paulo, n. 19, p. 36-42, jul. 2017. Disponível em: <https://hashitag.com.br/edicoes/edicao-19/>. Acesso em: 16 nov. 2017.

WADA, Elizabeth Kyoko. Omotenashi: tradição de hospitalidade a serviço da competitividade. In: SEMINÁRIO DA ANPTUR, 2016, São Paulo. Anais do Seminário da ANPTUR… São Paulo: [s.n.], 2015. p. 01-13. Disponível em: <https://www.anptur.org.br/anais/anais/v.11/DHT1_pdf/71.pdf >. Acesso em: 16 nov. 2017.

POWELL, Steve John ; CABELLO, Angeles Marin. The world’s most polite country? : It’s so well mannered that even the toilet seat stands to attention when you enter the bathroom.. Disponível em: <http://www.bbc.com/travel/story/20160415-the-worlds-most-polite-country>. Acesso em: 18 nov. 2017.

KAWANAMI, Silvia. Omotenashi: O Espírito da Hospitalidade Japonesa. Disponível em: <http://www.japaoemfoco.com/omotenashi-o-espirito-da-hospitalidade-japonesa/#>. Acesso em: 15 nov. 2017.

LASHLEY, Conrad. Para um entendimento teórico. In: LASHLEY, Conrad; MORRISON, Alison. Em Busca da Hospitalidade: perspectivas para um mundo globalizado. 1. ed. São Paulo: Manole, 2004. cap. 1, p. 1-24.

TELFER, Elizabeth. A filosofia da “hospitabilidade”. In: LASHLEY, Conrad; MORRISON, Alison. Em Busca da Hospitalidade: perspectivas para um mundo globalizado. 1. ed. São Paulo: Manole, 2004. cap. 3, p. 53-77.

HAY, Mark. O Japão tá Construindo um Exército de Androides Simpáticos Demais para as Olimpíadas de 2020, em Tóquio: Olimpíadas de Tóquio, em 2020, serão ancoradas no conceito de omotenashi. Disponível em: <https://www.vice.com/pt_br/article/kbexwn/o-japao-ta-construindo-um-exercito-de-androides-muito-simpaticos-para-as-olimpiadas-de-2020-em-tquio>. Acesso em: 19 nov. 2017.

Este trabalho foi apresentado na disciplina Gastronomia e hospitalidade